O Acidente pela falta de Alternativa de Trabalho Seguro

3ª PARTE: O ACIDENTE PELA FALTA DE ALTERNATIVA DE TRABALHO SEGURO

Autores: Hudson Couto e Dennis Couto

“Se não for seguro, não faça”. Esse é o mantra de muitos programas comportamentais. Mas a realidade não é bem assim, e o número de acidentes decorrentes de falta de condições ergonômicas para o trabalho é muito alto.

O acidente

Numa empresa petroquímica, um dos gerentes nos relatou o caso de um operador de área que, ao caminhar sobre a tubulação (o que é proibido por norma interna), caiu de uma altura de mais de 3 metros, ficando afastado por alguns dias; ao retornar, ele, gerente, foi aplicar uma medida disciplinar, ocasião em que o trabalhador teria retrucado mais ou menos assim: “OK, eu assino, mas o senhor não terá mais produção”. 

O gerente questionou o trabalhador quanto a essa resposta, uma vez que a norma de segurança da empresa era explícita quanto à proibição de subir em tubulações, e o trabalhador respondeu: “Eu não estou desafiando o senhor, simplesmente estou dizendo que, para produzir, tenho que subir na tubulação. Não só eu, mas também todos os meus colegas.”

Indo então até a área, o gerente viu o motivo da fala do trabalhador: a posição de algumas válvulas. De fato, em algum horário do dia ou da noite, conforme o processo, a válvula teria que ser acionada, e não havia outra condição de fazê-lo a não ser subindo sobre a tubulação. À ocasião do projeto dessa área, “passou batido” que qualquer ser humano precisaria de um acesso adequado para conseguir abrir as válvulas.

Como o cérebro funciona

Existem 4 modos de consciência: de emoções, de sensações, de percepções e de pensamentos.  O cérebro trabalha com o conceito de pensamento presente: ele não pode se ocupar de uma série de pensamentos e decisões ao mesmo tempo, sob pena de desenvolver um quadro conhecido como síndrome da ansiedade. Ele também não pode simplesmente desconhecer todas as questões em pauta, mas tem que direcionar a atenção para as prioridades do momento.

 A estratégia utilizada é o foco na prioridade do momento e o desconhecimento temporário de questões consideradas não prioritárias, onde ficam em nível de latência e até mesmo pode haver desligamento de circuitos.

Mas existe um mecanismo adicional bem conhecido desde Freud nesse processo: quando o incômodo é importante e não pode ser tratado ou não se quer tratá-lo, o cérebro adota a estratégia das defesas psicológicas: negação (“esse problema não existe”), racionalização (achar uma explicação aceitável para um incômodo em princípio inaceitável), transferência de responsabilidade (“isso é problema de outro”) ou fuga (“não quero falar sobre isso”). Mas as defesas psicológicas mostram-se incapazes de dar solução completa ao incômodo, que pode voltar a incomodar, o que pode originar um comportamento impulsivo.

Nesse tipo de acidente, é necessário analisar a psicodinâmica de dois cérebros: o dos gestores/supervisores e o dos trabalhadores.

No cérebro dos gestores e supervisores, ocorrem 3 fenômenos: (a) a neutralização cerebral de imagens repetitivas; (b) a inibição de circuitos sobre os quais não se tem possibilidade de ação; (c) a mudança do foco para os itens de maior cobrança. E, conforme o caso, pode existir um quarto fator: a pura ignorância por desconhecer o problema ou a solução.

A neutralização de imagens repetitivas ocorre por mecanismo de inibição cerebral entre a área da visão – que fica na parte posterior do cérebro, denominada lobo occipital – e as múltiplas áreas relacionadas à atenção – um complexo de nada menos que 9 áreas cerebrais. Por esse mecanismo, deixa-se de prestar a atenção a situações não-conformes que continuam existindo no dia após dia. Em fisiologia do cérebro, esse fenômeno é denominado desatenção cega. Na prática, a condição errada passa a fazer parte da paisagem.Quando não é possível ter ação sobre uma determinada realidade, nosso cérebro “inventa” uma forma de não se sobrecarregar com aquele fator: é o parar de pensar, que funciona em nível consciente, mas que tem uma pontinha de inconsciente, como se fosse uma memória não totalmente esquecida, mas colocada “debaixo do tapete”. Na prática, com tantas questões que têm o supervisor e o gerente para resolver, nada demais se deixar esse incômodo da condição inadequada temporariamente esquecida. Esse mecanismo vem com o terceiro, que é o direcionamento do foco de forma sustentada ao longo da jornada de trabalho (ou mesmo depois dela) para os itens de maior cobrança: cronograma de produção, sem o qual há multas para a empresa, qualidade e o controle sobre custo, naturalmente.

Essas possíveis tormentas no pensamento do gerente são abafadas por uma racionalização bem evidente: os trabalhadores tomam cuidado e, certamente, tomarão cuidado ao perceberem e lidarem com a condição inadequada de trabalho.

Entre os trabalhadores, também ocorrem alguns mecanismos cerebrais interessantes: um deles está relacionado ao conflito entre fazer a atividade em condições não adequadas versus colocar-se em risco de acidente, que costuma ser minimizado pelo mecanismo de aceitação coletiva daquela condição inadequada como a regra da operação. Outro mecanismo cerebral que minimiza o risco relativo é o histórico de que, na grande maioria das vezes em que a tarefa é feita fora da condição ergonômica, nada acontece.

 Outro fator que pesa na decisão do trabalhador de fazer a atividade é o conflito entre fazer a atividade fora das condições adequadas e o receio de represálias. Na prática, é a lógica do “manda quem pode, obedece quem tem contas para pagar.” Reservar uma atitude firme de “direito de recusa” fica apenas para situações de risco claro e iminente.

Assim é que, com essa tolerância de parte a parte, a vida do trabalho segue, executando-se as atividades em condições antiergonômicas, sem considerarem as partes estar havendo transgressão, até que um dia ocorre o acidente. Só que, ao contrário do que se pensa, acidentes desse tipo (por más condições ergonômicas, incorporadas à paisagem) não são raros e respondem por pelo menos 40% de todos os acidentes de uma organização.

A explicação do acidente

Não havia outra forma de realizar a manobra em algumas válvulas a não ser subindo na tubulação. A ordem formal proibindo essa conduta era considerada como “letra morta”, uma vez que fazia parte da rotina ter que assumir algum risco, especialmente quando se tinha a experiência de poucos acidentes ao se trabalhar dessa forma.

Certamente, a elaboração dessa norma interna não contou com o envolvimento de algum operador de área, que prontamente teria destacado ser impossível seguir normalmente com o processo produtivo sem a necessidade de subir na tubulação.

A questão do descompasso entre a realidade prescrita e a realidade operacional é um dos temas mais importantes da ergonomia. Ela está presente em dezenas de situações de trabalho. Em nossa pesquisa de 983 acidentes típicos trazidos por nossos alunos do Curso de Formação de Consultores em Ergonomia, na revisão feita de cada caso após a assimilação dos conceitos de ergonomia, reanalisamos com eles os acidentes com a seguinte pergunta: “o trabalhador tinha outra condição de realizar a atividade que não aquela?” Em nada menos que em 405 deles (41%) a resposta foi negativa. O trabalhador não tinha outra condição e então o acidente foi classificado como tendo o fator má condição ergonômica como importante em sua origem.

O fato novo do acidente relatado ocorreu quando, ao retorno do afastamento, o gerente abordou o trabalhador para aplicar a medida disciplinar; o pacto tácito de se trabalhar na condição inadequada havia sido quebrado pela atitude do gerente, originando o posicionamento do trabalhador de não se aceitar como transgressor. Essa atitude do gerente pode ser reflexo de um desconhecimento mais profundo dos níveis superiores quanto à rotina real do trabalho em campo. Ou, se a condição insegura era conhecida por ele, então a alternativa de suspensão do trabalhador (“balão”) pode ter sido a saída do gerente numa atitude impulsiva diante de um fato considerado inaceitável.

A prevenção

A formação de cultura em segurança e de cultura em ergonomia visa exatamente fazer com que a biblioteca de experiências relevantes das pessoas tenha uma carga de informações robusta sobre situações de trabalho inaceitáveis. Mas isso gera uma demanda adicional, típica das situações em que se energiza o grupo na percepção de risco: torna necessário haver melhores condições de trabalho. Como a demanda pode ser muito grande, uma estratégia das organizações é estabelecer algumas poucas “regras de ouro” (5 a 10). Mas elas não são tudo: muito mais importante do que ter a “regra de ouro” é resolver as questões ergonômicas mais críticas.

Ampliando o conceito

Em nossa pesquisa, os itens que mais se destacaram como causadores de acidentes por más condições ergonômicas foram: ferramenta imprópria ou inexistente; layout inadequado; padrão operacional existe, mas não contempla a ergonomia; ter que trabalhar em posição forçada do corpo; piso inadequado, proporcionando condições para queda; sobrecarga ligada à tarefa/atividade; meio inadequado de movimentação de materiais; acessos, escadas e rampas em más condições; ter que fazer esforços intensos; uso de equipamento ou máquina inadequado para a tarefa; e visão comprometida.

Para uma eficácia das medidas preventivas, os supervisores devem estar atentos e passar a ser mais reivindicativos na melhoria das condições básicas de trabalho para seus subordinados, uma vez que muitas das condições causadoras de acidentes por más condições ergonômicas fazem parte da rotina do trabalho.

A evolução da consciência de um conceito mais abrangente de ergonomia entre engenheiros e projetistas é ponto fundamental para que as condições de trabalho sejam melhores.

A correção das condições antiergonômicas pelo Comitê de Ergonomia passa a ter mais uma demanda: não basta apenas adotar medidas para reduzir as lombalgias e os acometimentos de membros superiores: também é necessário trabalhar sobre as demais condições ergonômicas, especialmente as citadas anteriormente.

Por fim, deve-se destacar a necessidade de se melhorar a investigação de acidentes, passando a acrescentar uma análise crítica das condições reais de trabalho.



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