Como o Cérebro funciona no acidente por motivação incorreta

Autores: Hudson Couto e Dennis Couto

Seguindo em nossa série de textos sobre acidentes do trabalho e a fisiologia do cérebro, vamos tratar agora de um tipo de acidente dos mais complexos para a análise de fatores causais: o que ocorre quando o trabalhador, deliberadamente, comete um ato inadequado, mesmo tendo aptidão física e mental, tendo as informações adequadas e não havendo dificuldade ergonômica em realizar a atividade de forma segura.

 O acidente

Como ocorre em todas as organizações de referência que buscam a cultura de comportamento seguro, naquela empresa os reparos em ponte rolante deveriam ser feitos por trabalhadores da manutenção. Recentemente, no entanto, seguindo um projeto geral de enriquecimento de funções e de redução dos tempos de parada dos equipamentos, havia sido adicionada à matriz de competência dos próprios operadores de máquinas (e também dos operadores das pontes cabinadas) a realização de pequenos reparos. Afinal de contas, a ponte rolante é um dos equipamentos que, se parado, pode gerar significativos atrasos nos processos produtivos que dela dependem.

JMS, 38 anos de idade, operador experiente na operação de ponte rolante cabinada, era um exemplo de operador eficaz, sempre atendendo à demanda e, que incrível, após sua admissão a ponte inclusive parou de dar problema. Quem sabe aquela observação sutil dita por ele ao supervisor em determinada ocasião: “deixa, chefia, que problema pequeno a gente mesmo resolve” tenha sido desconsiderada, até o dia em que um fusível do painel da ponte queimou e ele colocou um pedaço de arame no lugar de fusível (prática conhecida como jump), tendo causado explosão no painel, com queimadura da face do operador.

Em situações como essas, a medida administrativa mais óbvia e rápida é a simples demissão do sr. JMS. Mas, antes de concluir por essa medida, vamos analisar os mecanismos cerebrais dos antecedentes desse tipo de acidente, bem além do óbvio.

Como o cérebro funciona – as duas bibliotecas

Cada hemisfério de nosso cérebro possui duas áreas envolvidas com a decisão: no lobo anterior, imediatamente atrás dos olhos, está a área de BIBLIOTECA DE COMPORTAMENTOS ACEITÁVEIS, que poderíamos denominar de centro da consciência do certo e errado. Ali são armazenadas todas as informações que utilizamos como superego, ou seja, o nosso aprendizado de valores desde a infância, além daquilo que aprendemos na empresa, no caso, os valores relacionados ao comportamento seguro.

Na região parietal do cérebro (referência: um pouco acima da orelha) está a BIBLIOTECA DE EXPERIÊNCIAS RELEVANTES, área que nos dá consciência das experiências reais do cotidiano, ou seja, como as coisas de fato acontecem. Conectando essas duas áreas existe um feixe de fibras de alta velocidade, denominado fascículo arqueado ou “supervia”.

Assim, todas as vezes em que vivemos uma experiência com necessidade de decisão, ocorre em nosso pensamento uma checagem entre as duas bibliotecas e nossa decisão será consequência dessa checagem. Quando ocorre uma identidade das informações, a decisão tomada pela pessoa é tranquila, sem maiores tensões. Quando ocorre uma visão diferente, ou seja, quando uma biblioteca tem uma informação e a outra tem informação diferente, a decisão será feita com algum nível de tensão, e pode ter consequências.

 A explicação do acidente

A norma explicitada pela empresa de que reparos devem ser feitos por pessoas habilitadas específicas fazia parte daquilo que estava escrito na região do lobo frontal. Aliás, as regras e proibições ali estão escritas, às vezes um pouco esquecidas, mas estão ali.

Mas, no cotidiano do trabalho, muitas vezes há conflitos entre as duas áreas, pois pode estar escrito na área parietal a experiência real do cotidiano: parar um equipamento todas as vezes em que há um defeito simples pode vir acompanhado de uma mensagem sutil de “e você parou o equipamento por um defeitinho simples como esse?” Ou pode haver uma ambiguidade na expectativa em relação ao que o indivíduo deve dar como resultado, explicitada na regra recém instituída de o operador resolver pequenos defeitos. Também o resultado de operar o equipamento pelo maior tempo possível, aumentando a disponibilidade mecânica, pode ter uma valorização implícita, sob a forma de reconhecimento informal, como pode até mesmo ter um reconhecimento formal sob a forma de ganhos financeiros e bonificações relacionadas ao tempo de operação. Essa linha de raciocínio em que o que está na biblioteca parietal predomina sobre a biblioteca pré-frontal pode resultar em atitude ousada e incorreta da pessoa, que é ainda mais estimulada quando o indivíduo percebe que seus atos inadequados raramente resultam em acidentes.

Também ocorre o contrário, de esse conflito entre as bibliotecas resultar em posição firme da biblioteca do lobo pré-frontal e o trabalhador pautar suas atitudes por manter os cuidados (segundo os ditames dessa biblioteca). Isso pode ter como consequência uma avaliação negativa do trabalhador cuidadoso com a segurança e as regras, que pode ser visto como um indivíduo que trava o processo, que traz dificuldades para os resultados e que não tem a ousadia necessária para o trabalho.

A tênue linha de decisão do pensamento é complexa e pode resultar em acidentes como o citado, acidentes esses extremamente frequentes no cotidiano das organizações.

Observe-se, por fim, que nessa situação de conflito entre as bibliotecas, caso o trabalhador perceba que está sendo observado por uma chefia exemplar em termos de segurança, ele terá o comportamento correto.

 A prevenção

A prevenção desse tipo de acidente passa pelo entendimento do conflito entre as bibliotecas e a postura de firmeza em que todas as atitudes da empresa e das chefias sejam compatíveis com os ditames colocados na biblioteca pré-frontal.  Algumas práticas importantes são:

– As Regras de Ouro: um conjunto de 5 a 10 pontos fundamentais, inegociáveis; seu descumprimento irá caracterizar desrespeito ao que foi categoricamente estabelecido e claramente explicitado a trabalhadores e média gerência;

– A não-permissividade, explicitando que “o que é proibido é proibido”;

– O exemplo da chefia, mostrando coerência com as regras;

– O enquadramento de quem descumpre as regras, seguindo o princípio da “chapa quente”, que queimará quem a descumpre, seja essa pessoa de qualquer nível hierárquico;

– A observação e imediata correção de transgressões sutis no desempenho das pessoas;

– A inclusão, em SIPATs e DDS, de revisão de acidentes já ocorridos pelo descumprimento de normas.

– Feedback e reuniões periódicas de equipe abordando os temas de segurança e de acidentes.

Expandindo a aplicação

Devem as chefias e o time da segurança estarem atentos às muitas situações em que costuma haver esse “conflito de interesses”, aqui denominado “conflito das duas bibliotecas.”

(a) manutenção bem-feita versus tempo para se realizar um trabalho de boa qualidade;

(b) velocidade segura de operação de um equipamento móvel versus atendimento às diversas demandas em situação de falta de operadores ou de equipamentos;

(c) identificação de situações em que a prática errada é comum na área e é tolerada;

(d) atalhos operacionais comumente cometidos sem que haja consequências para a maioria desses atalhos;

(e) cultura insegura, em que o trabalhador percebe que a famosa frase “segurança é o nosso maior valor” não corresponde à realidade do dia a dia.Em uma frase: identificar as situações em que pode haver conflito entre as duas bibliotecas e não permitir esse conflito: o que está na biblioteca da região pré-frontal do cérebro tem que ser absoluto! É preciso que a chefia estabeleça condutas claras para situações conflitantes comuns presentes na realidade do trabalho.



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