O acidente por conflito de motivações em nível de chefia

Autores: Hudson Couto e Dennis Couto

Qual é a complexidade de uma decisão quando um gestor ou um diretor se vê diante de uma tentação para um resultado extraordinário, ou mesmo para não adotar alguma medida preventiva importante, mas sabe que pode estar incorrendo em algum grau de imprudência? Nesse texto, último desta série, abordaremos os mecanismos cerebrais envolvidos.

 Diálogos que costumam anteceder acidentes e tragédias

 No luxuosíssimo salão de festas do RMS Titanic:

Sr. J.B. Ismay (CEO da empresa White Star Line, que construiu o Titanic, se dirigindo a E.J. Smith, capitão do navio):

– Ainda falta acender quatro caldeiras?

– Não vejo necessidade. Nossa velocidade é excelente.

– Quero que a imprensa fale também da velocidade do Titanic. Os jornais querem fatos novos! Esta viagem inaugural precisa gerar manchetes.

– Sr. Ismay, eu prefiro não forçar os motores antes de amaciá-los.

– Sou só um passageiro. Decida o senhor o que é melhor. Mas fecharia sua carreira com chave de ouro se chegássemos um dia adiantado. Estaria nos jornais no dia seguinte. Que estouro, não?

E na saída do capitão, provavelmente para aumentar a velocidade do Titanic, o comentário sozinho do sr. Ismay:

– É um bom homem.

 Na empresa de mineração:

Se sua consultoria, que trabalha conosco há décadas, não pode atestar que nossa instalação é segura, parece que vamos ter que colocar um ponto e vírgula em nossa relação comercial. Pense bem…não é um ponto final, mas é uma pausa para pensarmos se queremos manter esse contrato…

 Com o técnico de segurança ou engenheiro de segurança:

-Assine este parecer; se você não tem argumentos técnicos convincentes para não assinar, também não pode argumentar porque não irá assinar…é o seu papel.

 Ao gerente de operações, em processo com algum grau de insegurança:

– Entenda, só há dois tipos de gerentes: o decidido e o hesitante; o decidido cresce na empresa; já o hesitante…

Como o cérebro funciona

Relembrando o conceito já colocado anteriormente, cada hemisfério de nosso cérebro possui duas áreas envolvidas com a decisão: no lobo anterior, imediatamente atrás dos olhos, está a área de biblioteca de comportamentos aceitáveis, que poderíamos denominar de centro da consciência do certo e errado. Ali são armazenadas todas as informações que utilizamos como superego, ou seja, o nosso aprendizado de valores desde a infância e também aquilo que aprendemos na empresa, no caso, os valores relacionados ao comportamento seguro. Na região parietal do cérebro (referência: um pouco acima da orelha) está a biblioteca de experiências relevantes, área que nos dá consciência das experiências reais do cotidiano, ou seja, como as coisas de fato acontecem. Conectando essas duas áreas existe um feixe de fibras de alta velocidade, denominado fascículo arqueado ou “supervia”.

 Assim, todas as vezes em que vivemos uma experiência com necessidade de decisão, ocorre em nosso pensamento uma checagem entre as duas bibliotecas e nossa decisão será consequência dessa checagem. Quando ocorre uma identidade das informações, a decisão tomada pela pessoa é tranquila, sem maiores tensões. Quando ocorre uma visão diferente, ou seja, quando uma biblioteca tem uma informação e a outra tem informação diferente, na necessidade de decidir ocorre algum grau de tensão, maior ou menor, e a decisão tem consequências.

A explicação desse tipo de acidente

“Segurança é nosso primeiro valor” e outros mantras desse tipo são colocados para gestores e supervisores em toda boa empresa, ou por indústrias cujo ramo de atividade envolva alto potencial de acidentes. Essa mensagem tem uma aceitação boa no inconsciente de todo gerente. Mas, na realidade de seu trabalho, gestores e supervisores costumam se deparar com uma outra realidade, percebida pela biblioteca da região parietal: nem sempre existem recursos necessários para a obtenção dos resultados que lhe são cobrados; ou há estímulos para ousar, mesmo em situações de uma certa insegurança. Esse conflito entre as bibliotecas costuma cobrar um preço alto na liderança: tensão, especialmente quando a falta de recursos pode estar relacionada a aspectos críticos da segurança no trabalho ou quando a ousadia contém algum grau de imprudência.

Essa tensão ficará bem resolvida no sutil e complexo mecanismo de tomada de decisão se o gestor perceber coerência dos níveis superiores, não o obrigando a obter resultados se não tiver as condições mínimas de segurança.

Mas poderá haver o contrário: de ser demandado para obter os resultados apesar de não ter os recursos mínimos ou não estar totalmente seguro quanto ao processo. Nessa circunstância, um fator complicador pode ser a indução para atitudes ousadas com os 3 argumentos que se constituem nas 3 tentações básicas do ser humano: (a) a tentação do ter – para continuar tendo os bens materiais mais elevados na escala social o gestor tem que cumprir o que lhe é cobrado e dar o resultado operacional: (b) a tentação do prestígio, sob a forma de que ser decidido e ousado é próprio de quem é diferente, melhor; (c) a tentação do poder, traduzida na costumeira promoção a altos postos de pessoas ousadas. Outro fenômeno que faz a biblioteca parietal predominar é a anulação, na equipe, de pessoas que pensam de forma diferente, que preservam o cuidado (fenômeno conhecido como group-thinking).

 E assim, o gerente/supervisor ousa. Ousa tomando os cuidados mínimos, mas sempre com algum grau de sofrimento mental enquanto percebe que a biblioteca pré-frontal está sendo deixada em segundo plano e que o “segurança é o nosso primeiro valor” se transforma em “segurança é algo importante, quando possível”. Uma variação dessa psicodinâmica ocorre quando o gestor já não mais considera os ditames da biblioteca pré-frontal e, lá no fundo, suas atitudes são mais compatíveis com a necessidade de soltar os resultados.

Até que um dia o acidente ocorre. Nessa ocasião, além das perdas humanas, o gerente/supervisor passa por um sofrimento intenso, com forte sentimento de autodescrença, com pensamentos de autoextermínio, especialmente se deixado sozinho perante as autoridades ou quando, além de tudo, perde o emprego como consequência.

A prevenção

Declarações de Princípios, assinadas pela equipe gerencial, são de alto valor no sentido de nortear as ações e não deixar qualquer dúvida quanto ao comportamento esperado. (Entre profissionais autônomos, a referência é o Código de Ética, elaborado pelos respectivos Conselhos Federais).

 Seminários para gestores e supervisores têm que ser incisivos em relação a esse tema. Questionários de autoavaliação quanto a atitudes poderão ajudar a identificar em que grau segurança no trabalho é realmente um valor naquela organização. Avaliações da cultura de comportamento seguro também podem ser desenvolvidas, com as medidas daí decorrentes.

Recomendamos ainda que, pelo menos uma vez a cada 3 meses, a equipe de gerência deveria se retirar em seminário conduzido por consultor externo para fazer a reunião de verificação de “tigres nas jaulas”, nas quais se verifica se todas as chances de acidentes graves estão devidamente bloqueadas, seja por barreiras duras ou mesmo por barreiras brandas. Esse tipo de seminário deve ter uma fase preparatória, na qual um dos participantes é encarregado de demonstrar para o grupo que há falhas importantes no sistema de segurança e outro é encarregado de demonstrar que as barreiras estão funcionando adequadamente.

Expandindo a aplicação

Seminários periódicos de revisão de acidentes graves ou de maior potencial ocorridos na empresa nos últimos tempos ajudarão a manter a biblioteca dos lobos parietais sempre atualizada quanto a que acidentes de fato acontecem e não devem ser colocados no esquecimento. Se a casuística de acidentes naquela organização for baixa, apesar dos perigos existentes, devem ser resgatadas informações sobre acidentes ocorridos em outras organizações de atividade produtiva similar.Outra medida importante é a reflexão de casos reais de problemas passados por gestores ou engenheiros de segurança em processos penais em acidentes reais, nos quais “as escolhas de Sofia” se apresentaram. E reforçar com eles que a palavra-chave, nessas situações, é “viabilizar”, porém formando um consenso dos requisitos mínimos de viabilização para aquela situação, consenso que significa a posição razoavelmente bem aceita a que se chega após esgotados todos os argumentos lógicos, inclusive dos que pensam de forma contrária à maioria.



3 Comentários

  • Fernando Antônio Cláudio

    Excelente texto. Super compatível com os dilemas dos gestores e muito bem embasado tecnicamente. Já sabemos o quanto o comportamento do chefe influência o comportamento da sua equipe. Logo, a tratativa dessa questão com está abordagem cognitiva colabora com a redução das motivações incorretas do grupo. Muito bom!

  • Fernando Antônio Cláudio

    Ótimo texto sobre um tema extremamente importante e atual nas organizações. Esses conflitos estão presentes diariamente nas decisões dos gestores e entender a origem destas decisões é fundamental para tomar ações mitigadoras, via de regra, relacionadas a organização do trabalho. Já sabemos que a postura do chefe influencia o comportamento da sua equipe e, consequentemente, dá origem as motivações incorretas que podem culminar em acidentes e perdas.

  • Parabéns pelo artigo, argumentação técnica bem fundamentada para um tema extremamente atual e relevante. Atualmente observa-se que falar em gestão da Segurança e Saúde no Trabalho nas empresas deixou de ser uma novidade, porém, da teoria a prática há um longo caminho a percorrer, não basta apenas estabelecer temas e lemas relativos a prevenção de acidentes nas empresas é preciso mudar nossa visão sobre este tema. Quando as empresas estão engajadas com a prevenção, ganhamos um forte aliado para que deixemos de ser reativos para ser preventivos de fato, principalmente quando a gestão e todos que trabalham na empresa estão sensibilizados com estas questões.

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