- 24 de setembro de 2021
- Posted by: Ergo
- Categories: Artigos sobre Segurança do Trabalho, Notícias
Continuando nossa série de artigos sobre Como funciona o cérebro humano: no acidente e no comportamento seguro, dessa vez exploraremos o que acontece no cérebro quando se perde o nível correto de tensão, condição que, sob certas circunstâncias, pode se tornar fatal.
Aproveitamos para convidar o leitor a se inscrever em nosso próximo Webinário Ergo: Comportamento seguro e a fisiologia do cérebro, em que reuniremos todos os conceitos apresentados nesta série sobre como a fisiologia do cérebro nos leva a compreender acidentes e como a ergonomia pode ajudar nos programas de segurança!
2ª PARTE: O ACIDENTE POR NÃO ESTAR NO NÍVEL CORRETO DE TENSÃO
Autores: Hudson Couto e Dennis Couto
O acidente
Naquela tarde de sexta-feira de “céu de brigadeiro”, o turno do controlador de voo se encerraria às 17 horas. Na sala de controle, o movimento era baixo, com poucas aeronaves sendo controladas. Havia o desvio de atenção da supervisão para uma manobra especial da Aeronáutica, mas que não comprometia a carga de trabalho dos controladores. Alguns voos foram transferidos informalmente para o console de um dos controladores e um desses voos era de um jato executivo indo para o norte. Já se encaminhando para o final do turno, o controlador não se deu conta de que o jato executivo não havia solicitado autorização para mudar de altitude ao passar por aquele centro de controle (conforme era previsto no Plano de Voo) e tampouco percebeu que, a partir daí, essa aeronave passou a voar em rota de colisão com um jato comercial que voava para o sul; esse sinal ficou disponível em sua tela por diversos minutos. Após a troca de turno, feita novamente sem seguir o protocolo, o controlador de voo que assumiu aquele console detectou as aeronaves em rota de colisão, mas não conseguiu contato pelo rádio, tendo havido a colisão em pleno ar.
(Esta é uma parte de uma cadeia de falhas que resultou em catástrofe aérea no Brasil em 29 de setembro de 2006).
Como o cérebro funciona
Existe uma divisão clássica do estado do cérebro quanto a estar em vigília ou em estado de sono. E, claro, que as atividades de trabalho deveriam ser feitas estando o indivíduo no estado de vigília. Mas o conceito mais correto é que estar no estado de vigília sozinho não basta para se ter um bom desempenho: a sonolência no trabalho explica um certo número de acidentes (motoristas que dormem ao volante, especialmente durante a madrugada), mas não explica todos os eventos, pois muitos acidentes ocorrem pela perda do nível correto de tensão, mesmo estando o trabalhador desperto.
O que é “estar no nível correto de tensão”? É um complexo ação-emoção que, em conjunto com a vigília, resulta em ótimo estado de alerta, fundamental para o bom desempenho.
Psicologicamente, é um estado em que o indivíduo se põe de prontidão para prestar atenção aos fatos ao seu redor e para a ação daí decorrente, inclusive com atenção focada em ocorrências não usuais. No sistema nervoso, ocorre uma descarga de estímulos elétricos para uma parte do sistema motor denominado extrapiramidal, que descarrega impulsos para um tipo de neurônio existente no corno anterior da medula espinhal (denominado motoneurônio gama), que estimula as fibras nervosas intramusculares para se contraírem um certo tanto, sem haver movimento muscular. O resultado prático é que os filamentos contráteis actina e miosina ficam mais interdigitados, colocando o sistema musculoesquelético do indivíduo pronto para respostas musculares rápidas.
Quando o estado de vigília se soma ao nível correto de tensão aparece uma outra característica em que o cérebro funciona muito bem: o nível de alerta, ou “awareness”, que é o termo usado na literatura de língua inglesa pelos especialistas em Ergonomia Cognitiva e dos fatores humanos.
O leitor já deve ter deduzido a importância desse mecanismo para a prevenção de acidentes.
Mas também deve-se considerar que, se o grau de tensão neuromuscular for excessivo, o indivíduo em alta prontidão poderá sofrer de dores musculares, especialmente na região do pescoço e dos ombros por acúmulo de ácido láctico. Ao contrário, um estado de relaxamento muscular pode ser muito bom para descansar, mas, claramente falando, não é bom quando se necessita de performance.
A explicação do acidente
Ao longo da jornada, o grau de alerta (“situational awareness” – consciência situacional) do controlador de voo pode ter caído, em decorrência, provavelmente, de ter saído de seu nível correto de tensão. Podem ter contribuído para isso a calmaria daquela tarde de sexta-feira, com poucas aeronaves para monitorar, assim como o desvio de atenção da equipe com operações da Aeronáutica e a transferência não-oficial de supervisão de voos entre os consoles, além da proximidade do final do turno.
Muitos acidentes e perdas ocorrem por diminuição do nível correto de tensão: times de futebol perdem jogos decisivos em alguns instantes e sofrem “apagões” fatais. Cirurgiões cometem erros e a equipe médica deixa compressas ou pinças no abdômen do paciente por esse motivo. Passageiros esquecem documentos no check-in de aeroporto por estarem distraídos com outras coisas quando deveriam estar ligados naquele momento. Operadores de equipamentos móveis ou motoristas de caminhões e de veículos automotores sofrem acidentes pela perda do nível de prontidão e do foco. Motoristas de automóveis atropelam motociclistas ao saírem do foco do trânsito e direcionarem a atenção para conversas ou para ver mensagens no celular. Operadores de sistemas supervisórios se distraem e perdem detalhes do funcionamento daquela planta química.
Infelizmente, sabemos que existem muitos fatores que tendem a tirar o indivíduo do seu nível correto de tensão: conversas, músicas, piadas, outras fontes de distração, além do movimento de relações humanas que, durante muito tempo, apregoou que os ambientes de trabalho deveriam ser relaxantes.
A prevenção
O que fazer? Hoje, felizmente, esse conceito da necessidade de se estar no nível correto de tensão já ressurge como uma das medidas fundamentais em todos os tipos de trabalhos. Na aviação comercial, por exemplo, existe o procedimento de “sterile cockpit”, que preconiza que, durante as fases mais críticas do voo (como pousos e decolagens), todos os pilotos são proibidos de realizar no cockpit quaisquer atividades não-relacionadas ao voo, como conversas paralelas ou outras distrações.
Para se estar no nível correto de tensão, algumas práticas ajudam:
· Treinamento de Consciência Situacional é a principal medida. Ele inclui percepção da situação, compreensão do seu significado e sua projeção na atuação esperada, pensada com antecedência. Em treinamentos e em reciclagens (controlados em calendário), sempre se deve passar a imagem de que o perigo está à espreita da distração. É de alto valor evocar casos de incidentes já ocorridos naquela empresa ou em outras por perda do nível correto de tensão, recordando e reforçando o que deve ser feito de cuidado em cada passo crítico. O modelo mental que deve existir é: “vou prestar atenção a cada detalhe do trabalho, especialmente nas etapas mais críticas”.
• Praticar um breve exercício físico de marchar no mesmo lugar (2 minutos) a cada hora trabalhada, levantando-se e alternando a postura; esse exercício também contribui para a aptidão mental no trabalho pela secreção de noradrenalina, que tem efeito de aumentar a velocidade da transmissão dos estímulos nas sinapses no sistema nervoso central. Atenção: nessas pausas, não são indicadas ginásticas de relaxamento.
• Não praticar atividades simultâneas durante o trabalho; colocar o visor do celular para baixo, para não ser distraído pela chegada de mensagens;
• Pedir para não ser interrompido durante os instantes de maior empenho intelectual com o trabalho; na organização do trabalho, controlar a qualidade das mensagens e das interrupções.
Testes de atenção aplicados a cada duas horas também ajudam; hoje há algumas baterias muito úteis disponíveis no próprio sistema que o indivíduo está operando, assim como em veículos automotores profissionais.
Ampliando o conceito
Para motoristas de caminhões, que muitas vezes transitam sozinhos pelas rodovias, os modernos GPS e os sistemas de monitoramento do grau de vigília e de alerta também são guias úteis. Muitos deles se baseiam na leitura do tônus dos músculos faciais, outros adicionam mensagens da central, especialmente faladas, indicando situações de perigo no trajeto, também contribuindo, de certa forma, com uma “fala de gente”, mesmo que gravada, para compensar a sensação de isolamento.
Nas atividades que envolvem a necessidade de alerta, atenção especial deve ser dada aos finais de turno, onde o grau de tensão tende a cair e o relaxamento daí decorrente pode gerar que o indivíduo venha a perder, mesmo que por alguns instantes, a capacidade de percepção da dinâmica da operação.
Mas, independentemente disso, no início de turnos deve ser privilegiada a postura atenta do operador, com reforço da necessidade de manter essa postura durante toda a jornada.
Por fim, em situações em que um erro por falta de nível correto de tensão pode ser catastrófico, devemos recorrer aos bloqueios das ações erradas ou de suas consequências, como já discutimos em nosso primeiro artigo desta série.
Excelente artigo! Isso realmente acontece muito. Com certeza não estar no nível correto de tensão realmente causa muitos acidentes. Obrigada pela abordagem!
Parabéns iniciativa.
Sempre usei uma expressão jocosa para valorizar esse tema ” prefiro um burro concentrado a um gênio distraido”.
A emotividade obinubila a objetividade. Emoções positivas (alegria) ou negativas (tristeza, decepções) alteram sensivelmente a cognição momentânea.
Como sempre, Dr Hudson expande nossa compreensão com sua expertise e profundo conhecimento em Ergonomia! Agradeço por mais aprendizado. Infelizmente por questões de saúde não tenho conseguido aproveitar com mais frequência o nosso mestre tem pra nos ensinar! Parabéns Dr Hudson, o tema é muito bom!!